Voluntariado em viagem: questões e reflexões

Aliar turismo e voluntariado parece ser uma fórmula altruísta para aplicar nas férias. Mas será que é benéfica para as comunidades que recebem voluntários?

Há mais de 10 anos, parti para o que pensava que seriam três meses de voluntariado na Argentina. Confesso a minha ignorância da altura sobre o que era o “volunturismo” e o verdadeiro impacto do voluntariado internacional. Como tantos de nós, queria viajar e queria ajudar, em simultâneo.

As minhas buscas online, que agora percebo foram bastante aleatórias, levaram-me até uma organização que parecia ter tudo muito bem organizado e um país onde falava a língua, a minha única consideração. Paguei quase 3000 euros pelos 3 meses de projeto, com estadia e alimentação, porque podia, e fui.

Enquanto lá estava, decidi que não queria voltar para Portugal e para o meu trabalho como dentista. Descobri que a empresa, por vezes, contratava antigos voluntários para trabalharem como coordenadores e que havia a oportunidade de o fazer, na Argentina. Parecia destino. Concorri e fiquei. Pensei realmente que poderia fazer alguma diferença, ajudando outros a passarem pelas mesmas experiências que eu.

Enquanto fora voluntária, parecia tudo relativamente simples e digno. Ia para a instituição, brincava com os miúdos, ajudava-os com os trabalhos de casa, tentava ensinar-lhes algumas coisas e motivá-los a esforçarem-se na escola para melhorarem as suas condições de vida.

Havia dias em que voltava para casa exausta e frustrada. Mas, no dia seguinte, algum dos miúdos me dizia que fora para a escola porque se lembrara do que eu lhe tinha dito, ou finalmente conseguia estabelecer uma relação com algum outro mais tímido.

Trabalhando do outro lado, como coordenadora de voluntários durante quase um ano, aprendi que o funcionamento era muito diferente do que eu pensava e que a tal organização era, na verdade, uma empresa de “volunturismo”, orientada para o lucro.

Alguns projetos eram mais orientados para a “lavagem de consciência” do voluntário, do que para benefício das comunidades que eram suposto ajudar. A determinada altura, debati-me com a possibilidade de nada daquilo fazer sentido. É certo que se via um impacto positivo na vida do voluntário, mas o que dizer do efeito nas comunidades?

Este sentimento assombrou-me durante algum tempo. Levou-me a pesquisar sobre a estrutura e a ética do voluntariado internacional e a prestar mais atenção ao meu trabalho. Pus de lado o medo de descobrir que fizera a escolha errada, permiti-me realmente refletir sobre tudo o que tinha vivido.

Desde então, já participei noutros projetos de voluntariado, em casa e fora de Portugal, como dentista, dando muito mais atenção ao impacto dos projetos.

O voluntariado internacional não é necessariamente mau, mas tem de ser feito com muita responsabilidade. Deixo-vos algumas das reflexões que fui fazendo, e que me parecem importantes para quem considere fazer voluntariado em viagem.

Não me vou debruçar sobre a cooperação para o desenvolvimento com grandes organizações como a ONU e o voluntariado médico em zonas de desastre, porque são questões bastante diferentes, apesar de partilharem alguns dos mesmo princípios.

Quem sou eu? O que tenho a oferecer?

Considerações filosófico-existencialistas à parte, esta é a primeira pergunta que nos devemos fazer, ao considerar o voluntariado em viagem. Porque é que o queremos fazer, e que habilitações/habilidades temos, que possam ser úteis.

Queremos “ir ajudar” para nos descobrirmos? Para nos sentirmos melhor connosco próprios? Porque temos alguma relação sentimental com determinadas pessoas, países ou circunstâncias? E a nossa ajuda, vai servir para alguma coisa? Podemos realmente oferecer algo que seja útil, ou achamos só que, para quem tem pouco, tudo serve, sejam coisas materiais ou o nosso tempo/habilitações? O que vamos investir na experiência, vai beneficiar alguém, para além do nosso próprio ego?

Consideremos, por exemplo, aquelas viagens em que, numa semana ou duas, se leva um grupo de viajantes a construir/pintar casas ou escolas. Essas pessoas, sabem construir ou pintar? Vão fazer um trabalho bem feito? O tempo que se vai perder a ensiná-las e o dinheiro que pagaram não seria melhor utilizado a contratar pessoal especializado local para fazer esse trabalho, mais rapidamente e melhor, ainda contribuindo para a economia local? 

Às vezes (diria até, a maioria das vezes), o dinheiro que investimos numa viagem de “voluntariado” de uma semana ou duas, seria muito mais útil se entregue diretamente a uma instituição de confiança. Outra forma de ajudar, em viagem, é procurar atividades ou tours que sejam geridos por instituições que promovam a formação das pessoas ou cujos lucros revertam para as suas atividades, que não têm necessariamente de envolver e juntar os viajantes com os beneficiários. 

Definir prioridades e perceber que tipo de organização apoiamos

Uma das recordações mais vívidas da minha primeira reunião de equipa como coordenadora é o nó na garganta com que fiquei, quando percebi que os projetos eram organizados a pensar nos voluntários e não nas comunidades. A sede da empresa, em Londres, tinha aceite todas as candidaturas, que eram mais que os lugares disponíveis, e exigia que se colocasse toda a gente.

Fiquei confusa. Os projetos eram estabelecidos de acordo com o número de voluntários, e não ao contrário? Felizmente, a equipa local era muito responsável e procurava lugares que beneficiavam realmente com a presença de voluntários internacionais. Mas nem sempre é o caso, o que pode ter consequências graves. E não deixa de ser a razão errada para criar projetos. É nossa responsabilidade, como possíveis voluntários, garantir que as organizações às quais nos juntamos fazem o seu trabalho pelas razões certas.

De modo geral, se temos de pagar para ir fazer o voluntariado, há lucro envolvido. Claro que há aqui nuances, e que se pode justificar algum valor a contribuir para as famílias de acolhimento, as equipas locais ou materiais a usar, mas é fazer as contas, considerando o custo de vida local.

Primeiro que tudo, não provocar danos

Este é um conceito fundamental quando se fala de voluntariado com crianças, principalmente em orfanatos ou centros de acolhimento para crianças removidas das famílias, seja internacional ou não. Lembro-me da Ines, um coordenadora experiente, repetir vezes sem conta: “Não deixem que os miúdos se afeiçoem demasiado a vocês. Por favor, expliquem-lhes que estão aqui para os conhecer e ajudar, mas que daqui a uns tempos se vão embora. E nunca, nunca, se vão embora sem lhes dizerem adeus!”

Tratam-se de crianças emocionalmente vulneráveis: a maioria foi abandonada, muitas foram abusadas. Apesar de desconfiadas numa primeira aproximação, estão sedentas de alguém em quem possam confiar e vão agarrar-se a quem lhes dê um pouco de atenção. Mas sentir-se-ão novamente abandonadas, se a relação estabelecida não for clara.

Se este processo for bem gerido, até pode ser uma boa maneira de perceberem que, ao longo da vida, as pessoas vão e vêm e que a sua partida não tem nada a ver com algo que fizeram. Mas isso não se faz em experiências de uma semana ou duas. Isto tem de ser bem explicado aos voluntários e monitorizado durante a sua estadia, ou poderão fazer mais mal que bem.

Experiência (também) é aprendizagem

Às crianças, este tipo de voluntariado dá-lhes a possibilidade de contactarem com pessoas e visões do mundo a que, de outra forma, provavelmente nunca seriam expostas. Este intercâmbio cultural ajuda-as a relacionar o resto do mundo a pessoas reais, o que aguça a sua curiosidade.

Antes de conhecer o Hans, o Rodrigo, de 14 anos, não fazia ideia de onde ficava a Alemanha, apesar de ter aprendido geografia na escola. Para ele, era apenas mais uma mancha no mapa. Um par de jogos de futebol depois da escola despoletou o interesse: quis saber onde ficava o país, onde era a cidade do Hans, o que é que ele comia, como eram os seus amigos e família.

Quando bem gerido, o choque cultural e o contacto mais próximo com as populações ensina os voluntários a lidarem melhor com as diferenças, a serem mais atentos e respeitosos com a diversidade cultural, tornando-os mais humildes e cientes dos seus privilégios.

Muitas vezes, depois de uma experiência internacional, procuram projetos para apoiarem/participarem perto de casa, criando reações de ajuda em cadeia. Apesar de essa não dever ser a razão principal por detrás de uma experiência de voluntariado internacional, é inegável o impacto que esta pode ter no voluntário, principalmente nos mais jovens. 

Oferecer a cana, mas ensinar a pescar

Ao escolher, criar ou apoiar uma organização, é essencial avaliar a sustentabilidade dos projetos. Estes não devem estar unicamente dependentes de voluntários, mas capazes de continuarem se estes não aparecerem, e almejar o empoderamento das populações.

Deve haver especial cuidado em não criar dependência de serviços ou produtos que a comunidade não possa suportar sozinha a longo-prazo, ou que tragam consequências negativas nos desejos dessas comunidades (lei das consequências acidentais).

Lembro-me sempre dos miúdos em São Tomé, a correrem atrás das carrinhas dos turistas a gritar “doce, doce”, após termos passado uma hora a explicar-lhes os malefícios dos açúcares e como deviam lavar os dentes.

Tudo porque, segundo nos explicaram, há uns anos uns missionários decidiram distribuir rebuçados pelas crianças e estas se habituaram a pedi-los aos turistas, que propagaram o costume.

Claro que, podendo, se deve fornecer materiais aos quais as pessoas não possam aceder, de preferência conseguidos localmente, se estes forem necessários para melhorar as suas condições de vida. Muitas das crianças a quem demos escovas e pastas de dentes, a quem fizemos rastreios e aplicámos flúor, nunca teriam acesso a elas de outra forma.

Mas isso deve ser sempre pensado numa perspetiva de longo prazo, e acompanhada de formação, e não um despejar de coisas cómodo para os visitantes.

Os voluntários não devem ser a única fonte de ajuda, principalmente no caso dos orfanatos ou escolas (mas aplica-se a qualquer projeto): e se, num determinado mês, não houver voluntários? Também devem ser pessoas capacitadas, capazes de passarem algumas das suas habilitações aos funcionários locais. Se pensarmos nas nossas instituições e nos nossos filhos, julgamos que faz sentido ter lá alguém que está a viajar pelo país a tratar deles, só porque sim?

O salvador branco

Na escolha dos projetos aos quais nos queremos juntar, bem como nas nossas próprias motivações, temos de prestar muita atenção ao que se chama o “complexo do salvador branco”.

Importa estar atento à tendência colonialista enraizada (mesmo que não sejamos conscientes dela) de que nós, ocidentais, é que sabemos como as coisas se fazem e vamos ensinar “os outros”.

Não considerar as diferenças culturais e o conhecimento das populações no desenvolvimento dos planos de ação é um problema grave da cooperação internacional, causador do falhanço de muitos projetos.

No caso do “volunturismo”, isto pode ser ainda mais evidente, devido à menor duração das estadias e pior preparação dos voluntários.

Com grandes poderes vêm grandes responsabilidades (Stan Lee)

Qualquer organização internacional deve trabalhar com instituições e ONGs locais; é da responsabilidade de ambas avaliarem a honestidade e sustentabilidade dos projetos, mas muitas não o fazem.

Como possíveis voluntários, é também responsabilidade nossa investigar todos estes aspetos durante a seleção. Temos de ser suficientemente honestos e humildes para reconhecermos o que temos realmente a oferecer e exigentes com as organizações.

Na minha primeira escolha de voluntariado internacional, não tinha esta informação, fiz uma escolha mal informada (ainda que bem intencionada), sentimental e relativamente egoísta. Não posso dizer que me arrependa. Afinal, mudou-me a vida. Mas aprendi que o impacto positivo no voluntário pode ser o mesmo, reduzindo muito as possíveis consequências negativas em quem nos recebe. É preciso pensar nisso também.


Dicas gerais para a escolha de projetos

O primeiro passo na escolha de um projeto deverá sempre ser uma avaliação cuidada das nossas habilitações, interesses e tempo disponível. Com isso estabelecido, partimos para a busca de possibilidades, que pode envolver uma pesquisa online mais generalizada, por palavras-chave, procura de bases de dados de organizações, falar com antigos voluntários e outros viajantes experientes.

Tendo em conta a quantidade de organizações e projetos, esta pesquisa pode ser assoberbante. Estabelecer claramente os nossos interesses, bem como a região para onde queremos ir, ajuda a afunilar o processo. Os sites Go OverseasIdealist, Voluntourism International , Para Onde e Transitions Abroad têm boas bases de dados de possíveis projetos. No entanto, informarmo-nos diretamente sobre ONGs locais que estejam a fazer trabalho que queiramos apoiar é, normalmente, a melhor maneira de garantir a ausência de intermediários e possibilidades de negócio menos justas.

Escolhido o possível projeto, devemos avaliá-lo tendo em conta tudo o discutido, nomeadamente a sua sustentabilidade, possibilidades de corrupção e a “lei das consequências acidentais”. Isto pode ser feito contactando diretamente a instituição, fazendo perguntas e pedindo contactos de antigos voluntários a quem podemos pedir opinião. A facilidade (ou não) com que a instituição responde é um bom indicador da sua idoneidade.

O último passo será a preparação para o trabalho. É importante familiarizarmo-nos com o tipo de trabalho que iremos fazer, os costumes locais e os possíveis materiais necessários. Saber se é necessário levá-los, ou podem ser adquiridos localmente, por exemplo. Se não estivermos totalmente confortáveis com a língua, é uma boa ideia tentar aprendê-la melhor previamente.

© Bornfreee. Pormenor da favela de Kibera, no Quénia

Histórias de Voluntariado em Viagem

Como eu, vários associados da ABVP já escolheram fazer voluntariado internacional. As suas histórias podem ser uma boa fonte de inspiração. Aqui ficam alguns exemplos:

O Rui Baptista, do Bornfree, conta a sua experiência ao visitar Kibera, no Quénia, e uma organização que, com ajuda de voluntários, dá a crianças da favela a oportunidade de estudar e o “luxo” de duas refeições por dia.

Os No Footprint Nomads, para além da enorme preocupação com a sustentabilidade ambiental das viagens, também têm relatos de voluntariado internacional no seu blog. A Catarina Gralha relata no podcast do seu Mundo Indefinido a sua experiência de voluntariado na Rússia.

A Andreia Castro, do Me Across the World, já usou a sua experiência como médica e não só, em vários projetos internacionais. Podem ver aqui algumas dessas experiências.

Partilhar
Filipa Chatillon
Filipa Chatillon

Viajante, líder de viagens, escritora e dentista, já fez voluntariado em vários países. A sua curiosidade inata e vontade de contar histórias relevantes que inspirem à mudança, bem como a paixão pelas letras e pelos livros têm-na levado a vários pontos do mundo, e a produzir textos para o seu blog e várias publicações.

Deixe um comentário

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *

Procurar